J. R. R. TOLKIEN, UMA BIOGRAFIA (1ª PARTE) – HUMPHREY CARPENTER
“Uma de minhas opiniões mais categóricas, é que a investigação da biografia de um autor é uma abordagem inteiramente vã e falsa às suas obras.”
SINOPSE
Nascido na África do Sul, em janeiro de 1892, John Ronald Reuel Tolkien ficou órfão durante a infância e cresceu quase na pobreza. Ele serviu na primeira guerra mundial, onde perdeu quase todos os seus amigos mais íntimos.
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Após a guerra, retornou à vida acadêmica, conquistando uma grande reputação como estudioso e professor universitário de inglês em Oxford, onde fez amizade com C.S. Lewis e os outros escritores conhecidos, formando um grupo denominado os Inklings.
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Certo dia, enquanto corrigia provas, ele acabou escrevendo no verso de uma folha: “numa toca no chão vivia um Hobbit” – Então, de repente, sua vida mudou dramaticamente.
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Humphrey Carpenter recebeu acesso irrestrito a todos os documentos de Tolkien e entrevistou seus amigos e familiares. A partir dessas fontes ele segue o longo e doloroso processo de criação que produziu O Hobbit, O Senhor dos Anéis e O Silmarillion e fornece uma vasta gama de informações sobre a vida e a obra de um dos mais estimados autores do século XX.”
Antes de mais nada preciso dizer que esse livro virou um dos meus xodós, tanto por aquilo que representa como biografia, tanto pela sensibilidade narrativa do autor, e pela bela edição da Harper Collins.
“J. R. R. Tolkien – uma biografia” é dividida em sete partes, uma nota do autor, um posfácio e alguns apêndices. São 384 páginas, nas quais somos envolvidos na vida de Tolkien através de uma narrativa simples, agradável e viciante. Partindo ás vezes de diferentes perspectivas de um mesmo período da vida de Tolkien. Humphrey Carpenter discorre desde antes de seu nascimento, contando um pouco da história de seus pais até seu nascimento em 1892 e morte em 1973.
OBS:. Resolvi dividir esse artigo em duas partes, pois como resolvi fazer um rascunho/resenha do livro, acabou ficando muito extenso.
NOTA DO AUTOR
Logo já de início, Humphrey Carpenter nos informa que Tolkien não era inteiramente favorável a biografias, ou melhor, desgostava-lhe que fossem usadas como forma de crítica literária, achava que “biografias eram uma abordagem inteiramente vã e falsa da vida e obras do biografado”. Porém com uma vida literária com bastante sucesso, notou que uma possível biografia poderia ser escrita sobre ele, então começou a deixar coisas escritas sobre si mesmo, trechos de cartas explicativas, escritos de seus diários, a até textos remetendo à sua infância.
Partindo desse pressuposto, Humphrey diz que espera que este livro não seja inteiramente alheio aos seus desejos.
PARTE 1: UMA VISITA
É uma manhã de primavera em 1967. O número 76 fica bem para o fim da rua. A casa foi pintada de branco e está parcialmente escondida pela cerca alta, a sebe e os ramos pendentes das árvores toco a campainha da porta da frente. Durante um bom tempo o silêncio é completo, quando começo a pensar em tocar a campainha outra vez, ou em dar meia-volta, a porta é aberta pelo professor Tolkien.
Ele é um pouco mais baixo do que eu esperava. Apresento-me, (marquei o encontro com antecedência e, portanto, sou esperado) o olhar interrogativo e um tanto defensivo acaba sendo substituído por um sorriso. Ele me oferece a mão e me cumprimenta com firmeza.
A Sra. Tolkien aparece por um momento, para cumprimentar-me. É mais baixa que o marido, uma velhinha bem-arrumada, cabelos grisalhos, sobrancelhas escuras.
O professor então sai pela porta da frente e leva-me para o seu “escritório”, ao lado da casa. O escritório é na verdade a garagem, que passou a abrigar livros e papéis As prateleiras estão atulhadas de dicionários, obras de etimologia e filologia, o mapa da “Terra-média” está preso por alfinetes ao peitoril da janela.
O professor pede desculpas por receber-me ali; explica que não há espaço no lugar onde efetivamente escreve e pedido dele sento-me em uma cadeira. Ele tira o cachimbo do bolso do paletó e começa a explicar que não poderá me dispensar mais do que uns poucos minutos.
Diz que tem de esclarecer uma evidente contradição num trecho de “O Senhor dos Anéis” que um leitor apontou por carta, me explica tudo com riqueza de detalhes, falando sobre o livro não como uma obra de ficção, mas como uma crônica de fatos reais;
É desconcertante, mas parece acreditar que conheço o livro tão bem quanto ele. Começo a temer que ele fará alguma pergunta sutil que revelará minha ignorância. Continuo nervoso, duplamente nervoso porque não consigo ouvir tudo o que diz. Ele tem uma voz estranha, profunda, inteiramente inglesa, mas contendo certa qualidade, como se ele viesse de uma outra era ou civilização.
Mas aí vem uma longa pausa durante a qual ele certamente espera que eu responda. Responder o quê? Se houve pergunta, não a entendi. Luto para pensar num comentário inteligente, porém subitamente ele recomeça antes que eu o consiga. Ele então foge para algum outro tópico, e mais uma vez sinto-me perdido, ao falar, ele se move sem parar, tem roupas um pouco amassadas, mas elas lhe assentam bem, e, apesar dos setenta e seis anos, há apenas uma suspeita de barriga.
A enxurrada de palavras secou por um momento, percebo minha oportunidade e declaro minhas intenções, que a essa altura já parecem não ter importância. No entanto, conquisto imediatamente o seu interesse, e ele me escuta atentamente. Terminada essa parte da conversa, levanto-me para partir, porém começou a falar de novo. Seus olhos fixam algum objeto distante, e ele parece ter esquecido minha presença.
Aí tudo acaba; ele me conduz para fora da garagem, leva-me até o portão do jardim, defronte à porta principal. Para minha considerável surpresa, convida-me para uma nova visita. Não para breve, pois ele e a sra. Tolkien vão tirar férias em Bournemouth; além disso, o trabalho está atrasado, e há uma pilha de cartas esperando resposta.
PARTE 2: 1892 – 1916 – OS PRIMEIROS ANOS
Num dia de março de 1891 Mabel Suffield, uma jovem inglesa esbelta e bonita de vinte e um anos, deixava a Inglaterra e ia para a África do Sul, um país desconhecido para casar-se com Arthur Tolkien, um homem treze anos mais velho. Apesar de ela ser tão jovem, o noivado fora longo. (Arthur Tolkien propusera-lhe casamento e ela aceitara três anos antes).
Os Tolkiens, foram fabricantes de pianos, origem de todo o dinheiro da família. Mas a empresa de pianos estava agora em outras mãos, e o pai de Arthur estava falido. Arthur voltou seu olhar para a África do Sul, onde a descoberta de ouro e diamantes estava fazendo das transações bancárias um negócio em expansão, com boas perspectivas para os funcionários.
John Suffield era um homem orgulhoso, especialmente em se tratando de antepassados que no seu caso, era o único motivo de orgulho que lhe restava. Outrora fora proprietário de um próspero negócio de fazendas em Birmingham, mas agora, assim como o pai de Arthur Tolkien, estava falido.
Arthur Reuel Tolkien e Mabel Suffield casaram-se na catedral da Cidade do Cabo em 16 de abril de 1891, e passaram a lua-de-mel num hotel na vizinha Sea Point. Bloemfontein, local onde ficava a casa que seria o primeiro e único lar de Mabel e Arthur, certamente não se revelou impressionante a Mabel quando ela e Arthur desembarcaram do trem na recém-construída estação. Mabel, escrevendo à família, resumiu a cidade como um “Enorme Deserto! Ermo Horrível”.
A saúde de Arthur não fora invariavelmente boa desde a chegada à África do Sul, mas o clima parecia adequar-se ao seu temperamento. Ela, por sua vez, passados apenas alguns meses, passou a detestar o clima de todo o coração. No entanto, ela adorava Arthur e sempre ficava feliz quando conseguia atraí-lo para longe da escrivaninha e iam passear a pé ou de carro, jogar uma partida de tênis, ou ler em voz alta. Logo descobriu que havia engravidado.
Em 3 de janeiro de 1892, nasceu John Ronald Reuel Tolkien. Reuel era o segundo prenome do próprio Arthur, mas Ronald foi o nome que Arthur e Mabel escolheriam para se dirigir ao filho, o nome que seria usado pelos parentes e, mais tarde, pela sua esposa. Ronald Tolkien foi batizado na catedral de Bloemfontein em 31 de janeiro de 1892.
As férias na casa dos pais de Mabel estavam próximas, coisa de um ano, apesar de Arthur sempre sugerir razões para adiar a visita à Inglaterra. “Não o deixarei adiá-la muito”, escreveu Mabel.
Mas a viagem teve de ser adiada. Mabel descobriu que engravidara novamente e em 17 de fevereiro de 1894 deu à luz outro filho, que foi batizado Hilary Arthur Reuel Tolkien. Hilary era um garoto saudável, que se desenvolveu muito bem no clima de Bloemfontein. Ronald era robusto e bonito, tinha cabelos claros e olhos azuis, já falava com desembaraço e divertia os funcionários do banco em suas visitas diárias ao escritório do pai.
Em novembro de 1894, tiveram início os preparativos para a visita à Inglaterra. Arthur reservara passagens e contratara uma babá que viajaria com eles. Queria muito acompanhá-los, mas não podia dar-se a esse luxo. O tempo que passasse longe seria mediante meio salário, e isto, mais as despesas da viagem, não podia ser facilmente custeado. Assim, decidiu juntar-se à esposa e aos filhos na Inglaterra um pouco mais tarde. O S. S. Guelph zarpou da África do Sul com Mabel e os garotos no começo de abril de 1895.
Em novembro, veio a notícia de que ele contraíra febre reumática, teria de recuperar a saúde antes de empreender a viagem. Mabel passou um Natal de terrível ansiedade. Quando janeiro chegou, soube-se que Arthur ainda estava com a saúde abalada, e Mabel decidiu que teria de voltar para tomar conta dele. Fizeram-se os preparativos para a volta, Ronald chegou a ditar à babá uma carta para o pai. A carta não foi enviada, chegara um telegrama dizendo que Arthur sofrera uma séria hemorragia. No dia seguinte, 15 de fevereiro de 1896, ele estava morto.
Mabel deu-se conta de que ela e os meninos não poderiam ficar morando para sempre na pequena e apertada casa de seus pais, no entanto, ela não tinha recursos para estabelecer um lar independente. Havia também a questão da educação dos meninos. Provavelmente ela mesma poderia cuidar disso durante alguns anos, pois sabia latim, francês e alemão, além de pintura, desenho e piano.
Ronald, agora com cinco anos, ajustava-se pouco a pouco à vida sob o teto dos avós. Quase se esquecera do pai, a quem logo consideraria como parte de um passado quase legendário.
John Suffield, seu avô, tinha uma longa barba e parecia muito velho, tinha sessenta e três anos e afirmava que viveria até os cem. Era um homem muito alegre. Foi assim que Ronald começou a acostumar-se com o modo de ser da família Suffield. Chegou a sentir-se muito mais chegado a eles que à família do falecido pai.
O avô Tolkien morava na mesma rua, e algumas vezes levavam Ronald para vê-lo, mas John Benjamin Tolkien tinha oitenta e nove anos e fora gravemente abalado pela morte do filho. Seis meses depois de Arthur morrer, ele estava em sua própria sepultura, e rompia-se mais um elo do menino com os Tolkiens.
Humphrey descreve as origens dos ancestrais dos Tolkiens contado pela Tia Grace, irmã mais nova de seu pai e diz que os Tolkiens sempre gostavam de contar histórias que emprestassem às suas origens um colorido romântico. Mas de qualquer modo, Ronald interessava-se mais pela família da mãe e logo nasceu uma forte afeição pelos Suffields e pelo que eles representavam. Escreveu certa vez: “Apesar de Tolkien no nome, sou Suffield por gosto, talentos e criação.”
Por volta do verão de 1896, Mabel Tolkien encontrou um local barato o bastante para que ela e as crianças levassem uma vida independente. Mudaram-se para o vilarejo de Sarehole. O efeito desta mudança sobre Ronald foi profundo e permanente. Exatamente na idade em que sua imaginação despontava.
Mabel logo principiou a educar os filhos, que não poderiam ter melhor professora, nem ela poderia ter um aluno mais apto que Ronald, que sabia ler aos quatro anos e logo aprenderia a escrever com perfeição. A caligrafia de Mabel era deliciosamente anticonvencional, ela optou por um estilo vertical e elaborado. Ronald logo começou a praticar uma letra que, apesar de diferente de da sua mãe, tornar-se-ia igualmente elegante e idiossincrática.
Suas lições favoritas eram as de línguas, a mãe começou a ensinar-lhe os rudimentos do latim, e isso o entusiasmou. Estava tão interessado nos sons e nas formas das palavras e ela percebeu que ele tinha uma aptidão especial para línguas. Começou a ensinar-lhe francês. Ele já não gostou tanto.
Era também um bom desenhista, principalmente quando o tema era uma paisagem ou árvore. A mãe ensinou-lhe um bocado de botânica, ele foi receptivo e logo se tornou um perito. Fora dos horários de aula, a mãe dava-lhe uma porção de livros de histórias. O que mais o deliciava eram os livros de fadas de Andrew Lang, especialmente o Red Fairy Book, pois, nas suas últimas páginas, estava a melhor história que já lera. Era a história de Sigurd, que matou o dragão Fafnir. Ronald ficava fascinado: “Eu desejava dragões com um desejo profundo”
Quando tinha uns sete anos começou a compor a sua própria história “Não me recordo de nada a respeito, exceto um fato filológico”, relembrou. “Minha mãe não disse nada sobre o dragão, mas observou que não se podia dizer ‘um verde dragão grande’, mas sim ‘um grande dragão verde’. Fiquei me perguntando e ainda me pergunto, por quê”.
O cristianismo desempenhou um papel cada vez mais importante na vida de Mabel Tolkien desde a morte de seu marido. Já algum tempo pensava em tornar-se católica. Foi um passo que não deu sozinha. A irmã, May lncledon, também decidira tornar-se católica. Imediatamente a ira da família desabou sobre elas. O pai, John Suffield, fora educado numa escola metodista, para ele era um ultraje inacreditável que as filhas se tornassem papistas. Sem falar nos Tolkiens, muitos dos quais eram batistas e se opunham vigorosamente ao catolicismo. Mas nada abalaria sua lealdade à nova fé, e, a despeito de toda a oposição, começou a instruir Ronald e Hilary na religião católica.
No outono de 1899 aos sete anos, Ronald prestou o exame de admissão na King Edwards, a antiga escola de seu pai. Não conseguiu, mas um ano depois, voltou a prestar o exame e passou. Um tio Tolkien, com uma boa vontade atípica para com Mabel, pagou a anuidade de doze libras. A escola ficava no centro de Birmingham, e, pesarosamente, Mabel decidiu que seus dias no campo haviam chegado ao fim. Encontrou uma casa para alugar em Moseley, próxima do centro da cidade e no fim de 1900 ela e os meninos deixaram o chalé onde haviam sido tão felizes.
“Quatro anos”, como escreveu Ronald Tolkien, já velho, “mas que me pareceram os mais longos da minha vida e que foram os mais importantes na minha formação.”
Ronald ainda se sentia profundamente infeliz por ter saído de Sarehole, mas encontrou certo consolo no novo lar. Os fundos da casa de Kings Heath davam para uma linha ferroviária e os nomes estranhos nos vagões de carvão que via nos desvios que ele não sabia pronunciar, exerciam sobre ele uma estranha atração. Foi assim que descobriu a existência da língua galesa.
Mais tarde, ainda criança, foi a Gales de trem, e, enquanto os nomes das estações passavam num lampejo distante de seus olhos, deu-se conta de que ali estavam palavras mais apaixonantes do que quaisquer outras que jamais encontrara, uma língua antiga e, no entanto, viva.
Nesse ínterim, sua mãe retomou também as longas caminhadas dominicais com os meninos em busca de um local de culto que fosse do seu agrado. Logo descobriu o Oratório de Birmingham, ligada ao Oratório e sob a direção do mesmo clero, havia a escola secundaria de S. Felipe, com anuidades mais baixas que em King Edwards, e onde os filhos poderiam receber uma educação católica. E havia uma casa para alugar pegada à escola. Assim, no começo de 1902, ela e os meninos mudaram-se de Kings Heath para Edgbaston, e Ronald e Hilary, com dez e oito anos respectivamente, foram matriculados na escola de. S. Felipe.
No Oratório de Birmingham estava o padre Francis Xavier Morgan, com quarenta e três anos. Mabel encontrou nele não apenas um sacerdote compreensivo, mas também um valioso amigo, não era um homem de grande intelecto, mas possuía um imenso estoque de bondade e humor e uma personalidade exuberante.
A escola de S. Felipe ficava apenas a um passo da porta, mas seu padrão acadêmico era correspondentemente mais baixo. Não demorou muito para que Ronald passasse a frente dos seus colegas de classe e Mabel percebesse que S. Felipe não poderia oferecer-lhe a educação de que ele necessitava. Tirou-o da escola, e de novo encarregou-se ela mesma da sua instrução. Alguns meses depois, ele ganhou uma bolsa de estudos e voltou para King Edwards no outono de 1903.
Na King Edwards, Ronald começou a aprender grego. Mais tarde, escreveria sobre o seu primeiro contato com essa língua: “A fluidez do grego, pontuada por dureza, e com seu brilho superficial, cativaram-me”.
No Ano Novo, Ronald e Hilary ficaram de cama com sarampo, seguido de coqueluche, e, no caso de Hilary, pneumonia. Em abril de 1904 Mabel estava no hospital com diabetes. Ainda não existia o tratamento com insulina, e o estado de Mabel causou grande ansiedade.
No verão, porém, ela havia se recuperado o suficiente para ter alta do hospital. Era óbvio que teria de se submeter a uma longa e cuidadosa convalescença. Em fins de junho de 1904, foram todos passar o verão em Rednal. O padre Francis visitava-os com frequência.
Mas sem que os filhos percebessem, a saúde de Mabel começou a se deteriorar novamente. No início de novembro entrou em coma diabético e, seis dias depois, em 14 de novembro, tendo ao seu lado o padre Francis e sua irmã, May Incledon, ela morreu.
Mabel Tolkien foi sepultada no cemitério católico de Bromsgrove, depois de sua morte, para Tolkien, a religião ocupou em suas afeições o espaço antes ocupado pela mãe. A religião proporcionou-lhe consolo não apenas espiritual, mas também emocional.
E, certamente, a perda da mãe teve um profundo efeito sobre sua personalidade. Tornou-o pessimista. Era por natureza uma pessoa alegre, com um grande gosto pela vida; adorava uma boa conversa e a atividade física. Tinha um grande senso de humor e uma enorme capacidade de fazer amigos. Mas, desde então, haveria um segundo lado, mais particular, porém predominante nos diários e cartas, um lado propenso a acessos de intenso desespero.
Em seu testamento, Mabel designara o padre Francis como tutor dos dois filhos. Ele logo teve de encontrar um local para os garotos viverem. Havia uma tia por casamento, Beatrice Suffield. Morava numa casa escura em uma longa rua lateral no bairro de Edgbaston. Os meninos tinham um grande quarto, Tia Beatrice deu a ele e ao irmão alimento e abrigo. Infelizmente, faltava-lhe afeto.
Ronald fez muitos amigos na escola, e um menino em particular tornou-se logo um companheiro inseparável. Seu nome era Christopher Wiseman. Era um ano mais jovem que Ronald, a amizade dos dois era baseada no interesse comum pelo estudo de latim e grego. ambas as línguas eram ensinadas particularmente bem na primeira classe. Mas uma coisa era saber latim, grego, francês e alemão, outra era compreender por que essas línguas eram o que eram. Tolkien começava a estudar filologia e sentiu-se mais encorajado ainda quando travou conhecimento com o anglo-saxão.
George Brewerton, tutor de Ronald ofereceu-lhe emprestado um livro elementar de anglo-saxão. Abrindo, Tolkien viu-se frente a frente com a língua falada pelos ingleses antes que os primeiros normandos pusessem os pés na sua terra. O anglo-saxão, também denominado antigo inglês, como antepassado da sua própria língua, era-lhe familiar e reconhecível e, no entanto, era ao mesmo tempo remoto e obscuro.
Remexendo a biblioteca da escola começou a descobrir livros alemães sobre filologia. E, como resultado, ele começara a inventar suas próprias línguas. Na idade adulta, Tolkien acreditava que seu impulso de invenção linguística era semelhante ao que sentiam muitos escolares. Quando o jovem Tolkien começou a trabalhar na invenção linguística a partir de uma base organizada, decidiu tomar uma língua existente como modelo ou, pelo menos, como ponto de partida. Um de seus colegas de escola comprara um livro em uma venda de missionários, ao descobrir que não tinha utilidade para ele, vendeu-o a Tolkien. Era o Manual da Língua Gótica de Joseph Wright. Tolkien achou-os imensamente atraentes. Não se contentou em simplesmente aprender a língua, começou a inventar palavras góticas “suplementares” e depois partiu para a construção de uma língua germânica supostamente não registrada, porém histórica. Trabalhava também em alfabetos inventados.
O padre Francis fizera bastante pelos meninos Tolkiens desde a morte de sua mãe e conversava muito com eles, acabou por descobrir que não eram felizes na casa de tia Beatrice. Tratou de procurar algo melhor e lembrou-se da Sra. Faulkner, que morava atrás do Oratório. Ele decidiu que essa casa poderia ser um lar mais agradável para Ronald e Hilary. A Sra. Faulkner concordou em acolhê-los, e, no início de 1908, os meninos mudaram-se.
Ronald e Hilary receberam um quarto no segundo andar, lá conheceram outra inquilina, uma garota de dezenove anos que morava no primeiro andar, abaixo do dormitório dos meninos, seu nome era Edith Bratt.
Era bastante bonita, baixa, esguia, de olhos cinzentos, um rosto firme e límpido e cabelos curtos e escuros. Os meninos descobriram que ela também era órfã, a mãe falecera havia cinco anos, e o pai, algum tempo antes disso. Edith tocava piano muito bem e, depois da morte da mãe, foi enviada para um internato de meninas especializado em música. Ela achou os irmãos Tolkiens muito agradáveis. Gostou particularmente de Ronald, ele e Edith tornaram-se amigos.
Ele tinha dezesseis anos e ela dezenove. Contudo, ele parecia mais velho, e ela, mais jovem. Era inevitável que nascesse um romance. Ambos eram órfãos com carências afetivas, e descobriram que podiam dar afeto um ao outro, chegaram à conclusão de que estavam apaixonados.
O padre Francis, tutor de Ronald fora como um pai para ele, e pode-se imaginar seus sentimentos quando descobriu que o tutelado a quem dedicara tanto afeto, cuidado e dinheiro não concentrava suas habilidades nos trabalhos de escola, mas mantinha um caso amoroso clandestino com uma garota três anos mais velha, que morava na mesma casa que ele. Então, chamou Ronald e disse-lhe que estava profundamente perturbado, e exigiu que o romance terminasse.
Ronald tinha grande afeto pelo padre Francis, dependia dele financeiramente, e não era um jovem rebelde. Levando em consideração tudo isto, concordou em fazer o que lhe foi ordenado. Exigiu também que ele não deveria comunicar-se com ela até que ele fizesse vinte e um anos, quando então o padre Francis não seria mais responsável por ele.
Edith decidira aceitar um convite para ir morar em Cheltenham com um procurador idoso e sua esposa, que haviam feito amizade com ela. Na quarta-feira, 2 de março, Edith partiu de Duchess Road para seu novo lar em Cheltenham.
Nas semanas que se seguiram à partida de Edith, ele esteve mórbido e deprimido. Na Páscoa, Ronald pediu permissão ao tutor para escrever a Edith, ele a concedeu, mas com relutância.
Para Ronald, a escola tornou-se o centro da sua vida, encontrou bons companheiros e amigos na King Edwards. No entanto, a sociedade em que ingressou na época era uma sociedade totalmente masculina. Todos os prazeres e descobertas dos três anos seguintes seriam compartilhados não com Edith, mas com outros rapazes, de modo que passou a associar a companhia masculina a muitas coisas boas da vida.
A biblioteca da escola era uma instituição importante na King Edwards, era administrada na prática por certo número de veteranos. Em 1911, esse grupo era formado por Ronald Tolkien, Christopher Wiseman, R. Q. Gilson. Esta pequena roda acabou por constituir um grupo chamado Tea Club (Clube do chá).
O “T.C.B.S”, como passaram a denominar o grupo (Wiseman relatou muitos anos depois: “começamos a sair para tomar chá na loja Barrow, na Corporation Street. No Salão de Chá havia uma espécie de compartimento, uma mesa para seis entre dois grandes sofás, bem isolado. Tornou-se o nosso lugar predileto, e mudamos nosso título para Barrovian Society, em homenagem às lojas Barrow”), admitiu mais tarde um quarto membro. Era Geofrey Bache Smith, um ano mais jovem que Gilson e quase três mais jovem que Tolkien, era conhecedor de literatura inglesa, especialmente poesia.
Em 17 de dezembro de 1910, Tolkien soube que conquistara uma “Open Classical Exhibition” no Exeter College. O resultado não era tão agradável pois ele tinha competência bastante para ganhar uma bolsa de estudos mais valiosa, mas com o auxílio de uma verba de conclusão escolar da King Edwards e ajuda adicional do padre Francis, seria possível ir para Oxford.
Com o futuro imediato assegurado, não estava mais sob pressão no que dizia respeito aos trabalhos escolares. Tornou-se monitor, secretário da Sociedade de Debates e secretário de Futebol. Foi por volta desta época que descobriu o Kalevala, ou “Terra dos Heróis”, a compilação de poemas que é o principal repositório da mitologia da Finlândia.
Quando entrava em Oxford, ele decidira que lá seria feliz. Aquela era uma cidade que podia amar e venerar, após a esqualidez e monotonia de Birmingham. Para Ronald Tolkien, aquele era o seu colégio, o seu lar, o primeiro lar verdadeiro que conhecia desde a morte da mãe. Entrou no time de rúgbi, tornou-se, membro do Clube de Ensaios e da Sociedade Dialética do colégio. Associou-se também à sociedade de debates do colégio e, não contente, fundou seu próprio clube. Um grau mais sofisticado que os chás na biblioteca da escola, o clube era uma expressão do mesmo instinto que ajudara a criar a T.C.B.S.
Estava estudando letras clássicas e tinha de frequentar com regularidade conferências e aulas com um orientador, Joe Wright. Como professor, Wright comunicou a Tolkien seu enorme entusiasmo pela filologia. Wright sempre foi um professor exigente, ao mesmo tempo, encorajava-o a mostrar iniciativa. Sabendo do interesse embrionário de Tolkien pelo galês, aconselhou-o a persistir. Tolkien seguiu o conselho, conseguiu encontrar livros de galês medieval e começou a ler a língua que há muito o fascinara. Todas as suas expectativas de beleza confirmaram-se. Beleza – era isso que lhe agradava no galês; a aparência e o som das palavras, quase independentemente do seu significado.
Desde que lera a tradução inglesa do Kalevala, esperava adquirir algum conhecimento dessa língua, e na biblioteca do Exeter College havia uma gramática finlandesa. Com a sua ajuda, começou a dar os primeiros passos no aprendizado da língua original do poema. Tolkien mais tarde diria: “Foi como descobrir uma adega cheia de garrafas de um vinho espantoso, de qualidade e sabor nunca provado antes. Fiquei completamente inebriado.”
O efeito desse aprendizado sobre o seu processo de invenção de línguas foi fundamental e notável. Abandonou o neogótico e começou a criar uma língua intensamente influenciada pelo finlandês, língua que mais tarde surgiria em suas histórias como “Quenya”, ou alto-élfico.
Em 3 de janeiro de 1913 Ronald comemoraria seu vigésimo primeiro aniversário e pretendia reencontrar-se com Edith Bratt por quem esperara durante quase três anos, e que ele tinha toda a certeza, esperara por ele. Quando o relógio deu meia-noite, sentou-se na cama e escreveu uma carta, renovando sua declaração de amor e perguntando-lhe: “Quanto tempo mais até que possamos nos unir diante de Deus e do mundo?”
Mas quando Edith escreveu em resposta, foi para dizer-lhe que estava noiva e iria casar-se com George Field, irmão de sua colega de escola Molly.
Ele poderia ter decidido esquecê-la completamente. Ronald poderia ter rasgado a carta de Edith e deixado que se casasse com George Field. No entanto, Ronald sentia que as declarações e promessas dos dias passados podiam ser rompidas levianamente. Além disso, Edith fora seu ideal nos últimos três anos, sua inspiração e sua esperança para o futuro. Ele acalentara e cultivara seu amor por ela, amor que crescera em segredo, alimentado apenas pelas lembranças do romance adolescente. Decidiu que só havia uma coisa a fazer, ele tinha de ir a Cheltenham, persuadi-la a desistir de George Field, e pedir-lhe que se casasse com ele.
Na verdade, sabia que ela diria sim. Ela o insinuara na carta: “Comecei a duvidar de você, Ronald” e a achar que você deixaria de gostar de mim.” Mas agora que ele escrevera para reafirmar seu amor, ela dava a entender que tudo mudara.
Na quarta-feira, 8 de janeiro de 1913, ele tomou um trem para Cheltenham e foi recebido por Edith na plataforma. Os dois caminharam pelo campo e sentaram-se sob um viaduto ferroviário para conversar. No fim do dia, Edith declarou que desistiria de George e se casaria com Ronald. Ela escreveu a George e devolveu-lhe a aliança. Ronald, voltou para Oxford “explodindo de felicidade”. Uma de suas primeiras atitudes ao chegar foi escrever ao padre Francis comunicando que ele e Edith pretendiam casar-se, apesar de não ser mais tutor legal de Ronald, ele ainda lhe dava o tão necessário sustento financeiro, assim, era essencial que ele tolerasse o noivado.
O problema da religião de Edith causou certa preocupação a ela e a Ronald, ela teria de tornar-se católica. Ela era um membro da Igreja da Inglaterra, e muito ativa. Ronald Desprezava a Igreja da Inglaterra, dizia que era uma “patética e sombria miscelânea de tradições semiesquecidas e crenças mutiladas”.
“Creio fervorosamente”, escreveu Tolkien a Edith, “que nem a indiferença nem o temor mundano devem nos impedir de seguir resolutamente a luz.” Claramente, a conversão de Edith se tornara para ele uma questão emocional, em parte, embora ele não o admitisse, é possível também que quisesse pôr à prova o amor de Edith após a infidelidade do noivado com George Field. Assim, ela fez o que ele queria.
Agora que se aproximava a hora em que ela seria recebida na Igreja Católica, haviam decidido formalizar o noivado, e ele teria de contar aos amigos. Edith foi instruída na fé católica pelo padre Murphy, o pároco de Warwick. Em 8 de janeiro de 1914, Edith foi recebida na Igreja Católica Romana.
No início do período do verão de 1913, Tolkien abandonou os estudos de letras clássicas e passou a estudar inglês. Iria especializar-se em estudos linguísticos, e seu tutor seria Kenneth Sisam, um jovem neozelandês.
Ronald estava se tornando decididamente fino. Passeava de barco, jogava tênis, e de vez em quando trabalhava um pouco. Comprou móveis, mandou fazer ternos e fundou outro clube com seu amigo Colin Cullis, os Chequers. Foi eleito presidente da Sociedade de Debates do colégio.
No fim do verão de 1914, a Inglaterra declarou guerra à Alemanha. Os jovens já se alistavam aos milhares, respondendo ao apelo de Kitchener por soldados. Os sentimentos de Tolkien, porém, eram bem diferentes: queria ficar em Oxford até graduar-se, e tinha esperanças de classificar-se na Primeira Classe. Assim, Tolkien voltou à universidade para o “Michaelmas term” ficou animado quando soube de um programa que lhe permitiria treinar para o exército enquanto estivesse na universidade. Tolkien inscreveu-se no programa. Mudou-se de seus alojamentos no colégio e foi morar na St. John’s Street. Alegrou-se também quando descobriu que o amigo G. B. Smith, da T.C.B.S., ainda estava em Oxford esperando uma patente no corpo de fuzileiros de Lancashire. Tolkien resolveu tentar obter um posto no mesmo regimento.
Alguns dias após o início das aulas começaram os exercícios nos Parques da Universidade. Era preciso conciliar a nova atividade com o trabalho acadêmico, mas Tolkien descobriu que a vida dupla combinava com ele. No começo das férias de Natal de 1914, viajou a Londres para participar de um encontro da T.C.B.S. Era curioso como o pequeno grupo de amigos de escola havia continuado a encontrar-se e a trocar cartas. Imediatamente após o fim de semana em Londres, começou a escrever poemas. G. B. Smith leu todos os poemas de Tolkien e mandou-lhe críticas. foi encorajador, mas observou que Tolkien poderia melhorar os seus versos se lesse mais autores ingleses. Mas Tolkien deu-lhe pouca atenção.
Vinha trabalhando havia algum tempo na língua influenciada pelo finlandês, e, por volta de 1915, esta já havia adquirido algum grau de complexidade, estava aperfeiçoando a língua, agora tinha de decidir a quem ela pertencia.
Durante o ano de 1915 a imagem tornou-se clara na mente de Tolkien. Esta, decidiu ele, era a linguagem falada pelas fadas ou elfos que Earendel vira durante sua estranha viagem. Enquanto a mente de Tolkien se ocupava com as sementes de sua mitologia, ele se preparava para o Schools, o exame final de Língua e Literatura Inglesa. O exame começou na segunda semana de junho de 1915, e Tolkien teve sucesso – conseguiu Honras de Primeira Classe. Nesse ínterim, teria de assumir seu posto como segundo-tenente no Corpo de Fuzileiros de Lancashire. O treinamento começou em julho, em Bedford.
No início de 1916, decidiu especializar-se em sinalização, pois a perspectiva de trabalhar com palavras, mensagens e códigos era mais animadora que a fadiga e a responsabilidade de comandar um pelotão. Por fim, foi nomeado oficial de sinalização do batalhão. O momento de embarcar para a França estava próximo, e Ronald e Edith decidiram casar-se antes da partida, já tinham esperado mais do que o suficiente, ele estava com vinte e quatro anos e ela com vinte e sete.
Foi a Birmingham para conversar com o padre Francis que iria se casar com Edith. Mas não teve coragem de falar sobre o casamento. Foi somente uma quinzena antes do casamento que finalmente lhe escreveu contando tudo. O padre Francis escreveu desejando a ambos “todas as bênçãos e felicidade”, e declarou que ele mesmo iria celebrar a cerimônia na Igreja do Oratório. Infelizmente já haviam sido feitos preparativos para que o casamento se realizasse na igreja de Warwick. Ronald Tolkien e Edith Bratt foram casados pelo padre Murphy na quarta feira, 22 de março de 1916. Após o casamento partiram de trem para Clevedon, onde iriam ficar por uma semana.
Quando regressaram Edith voltou a Warwick, mas somente para liquidar negócios pendentes na cidade. Haviam decidido que ela não teria um lar permanente enquanto durasse a guerra. Ela e a prima Jennie (que ainda morava com ela) foram para Great Haywood, um vilarejo perto do quartel onde Ronald estava, mas assim que Edith se instalou, ele recebeu ordens de embarque, e, no dia 4 de junho de 1916, partiu para Londres e de lá para a França. Tolkien chegou a Calais na terça-feira, 6 de junho, e foi para um acampamento em Étaples. Os oficiais novatos eram todos recrutas como ele, alguns com menos de vinte e um anos.
Humphrey narra aqui os lugares pelos quais Tolkien passou: Amiens, Rumbempré, etc.
Na sexta-feira, 30 de junho, mudaram-se para outro povoado mais próximo da linha de frente e na manhã seguinte, começou o ataque. Não participariam dele: sua tarefa era esperar na reserva e entrar na batalha alguns dias depois, mas não foi isto que aconteceu. O batalhão de Tolkien permaneceu na reserva. No primeiro dia da batalha haviam sido mortos vinte mil aliados.
Releu as cartas de Edith, com notícias de casa, e deu mais uma vista de olhos nos bilhetes dos outros membros da T.C.B.S. Estava preocupado com Gilson e Smith, que haviam estado no grosso da batalha, ficou tremendamente feliz e aliviado quando, G. B. Smith apareceu em Bouzincourt, vivo e ileso. Os dois amigos encontravam-se e conversavam tanto quanto podiam, discutindo poesia, a guerra e o futuro.
Tolkien entrou em combate pela primeira vez durante uma importante ofensiva planejada pelo comando aliado, sua companhia uniu-se à 7ª Brigada de Infantaria para um ataque ao arruinado vilarejo de Ovillers. O ataque fracassou, e muitos homens do batalhão de Tolkien foram mortos pelo fogo de metralhadora. Ele sobreviveu ileso, e depois de quarenta e oito horas sem descanso, finalmente pôde dormir um pouco no abrigo de uma trincheira.
No dia 19 de agosto, sábado, Tolkien e G. B. Smith encontraram-se de novo, em Acheux. Voltaram a se encontrar nos dias seguintes, e Tolkien retornou às trincheiras, muitos do batalhão de Tolkien foram mortos. Ele não sofreu nenhum ferimento. A possibilidade de uma licença era sempre iminente, mas nunca concedida. O que o salvou foi uma febre de origem desconhecida que os soldados chamavam simplesmente de “febre das trincheiras”. Transmitida por piolhos, causava elevação de temperatura e outros sintomas febris, e milhares de homens já haviam dado baixa por causa desse mal.
Em 27 de outubro, sexta-feira, foi a vez de Tolkien. Quando adoeceu foi transportado para vários hospitais, onde permaneceu de cama por vários dias. Mas a febre não cedia e, em 8 de novembro, foi posto a bordo de um navio com destino Birmingham. Assim, em alguns dias, viu-se transportado do horror das trincheiras para os lençóis brancos e a visão da cidade que conhecia tão bem. Estava novamente ao lado de Edith, na terceira semana de dezembro, deixou o hospital e foi passar o Natal com ela. Lá recebeu uma carta de Christopher Wiseman, informando que Smith havia morrido. Smith estava caminhando por uma estrada, quando um obus explodiu. Tentaram operá-lo, mas a gangrena havia se instalado. Foi sepultado no Cemitério Britânico de Warlencourt.
PARTE 3: 1917 – 1925 – A CRIAÇÃO DE UMA MITOLOGIA
A grande obra sobre a qual vinha meditando durante algum tempo, um grandioso e extraordinário projeto com poucos paralelos na história da literatura. Ele criaria uma mitologia inteira. Havia descoberto que, para conferir certo grau de complexidade, era preciso criar para as línguas uma “história” na qual elas pudessem se desenvolver. Havia também o desejo de criar uma mitologia para a Inglaterra.
Na capa de um caderno barato, escreveu o título que escolhera para seu ciclo mitológico: “O Livro dos Contos Perdidos”. No interior começou a compor o que acabaria por ser conhecido como o Silmarillion. As primeiras “lendas” que compõem o Silmarillion falam da criação do universo e do estabelecimento do mundo conhecido, Histórias posteriores do ciclo tratam principalmente da feitura dos “Silmarilli” e de como foram roubados do reino afortunado de Valinor pelo poder maligno Morgoth.
Tolkien dispôs sua mitologia desta forma porque queria que fosse remota e estranha, mas, ao mesmo tempo, que não fosse uma mentira quando escrevia “O Silmarillion”, Tolkien acreditava que, de certa maneira, estava escrevendo a verdade. Mas sentia, ou esperava, que suas histórias eram, de alguma maneira, a expressão concreta de uma verdade profunda.
Ao compor o Silmarillion, Tolkien certamente acreditava estar fazendo algo mais além de inventar uma história. Sobre os contos que compõem o livro escreveu: “Nasceram em minha mente como coisas ‘dadas’, e, à medida que vinham separadamente, cresciam os elos. Embora muitas vezes interrompida, no entanto, sempre tive a sensação de registrar algo já ‘presente’, em algum lugar, não de ‘inventar’”.
A primeira história foi escrita no começo de 1917, durante a convalescença de Tolkien em Great Haywood. “A queda de Gondolin”, que relata o ataque de Morgoth, o principal poder maligno, ao último reduto élfico.
As duas características mais notáveis da obra são criações exclusivamente suas: os nomes inventados, e o fato de que a maioria dos protagonistas são elfos. Estritamente falando, pode-se dizer que os elfos do Silmarillion nasceram do “povo das fadas” dos primeiros poemas de Tolkien. São, para todos os fins e propósitos, homens: ou melhor, o Homem antes da queda que o privou de seus poderes de realização. E o mais importante: são imortais, a menos que sejam mortos em batalha.
Tolkien esboçou uma grande quantidade de línguas inventadas quando era adolescente, e muitas delas chegaram a atingir certo nível de complexidade. Como uma língua com uma forte influência do finlandês, que ele denominou “Quenya”. Em 1917, esta língua já atingira um alto nível de refinamento e possuía um vocabulário de muitas centenas de palavras. O Quenya tinha origem, como qualquer língua “real”, em uma língua mais primitiva, supostamente falada em uma era anterior. Tolkien criou uma segunda língua élfica, mas falada por outros povos élficos. Esta língua recebeu o nome de “Sindarin” e teve a sua fonologia moldada a partir do galês. Além do Quenya e do Sindarin, Tolkien inventou muitas outras línguas élficas. Embora existissem apenas como esboço.
Ele formava todos esses nomes com grande cuidado, escolhendo primeiro o seu significado, depois elaborando a forma, primeiro em uma língua e depois na outra; a forma definitiva era geralmente a do Sindarin. Com o passar dos anos, Tolkien, cada vez mais, passou a considerar suas línguas e narrativas como línguas “reais”. Edith estava contente por poder ajudá-lo, e passou a limpo “A queda de Gondolin”, à tardinha, ela tocava piano e ele recitava seus poemas ou esboçava retratos dela. Edith engravidou nesta época.
A “febre das trincheiras” causava pouco mais que elevação de temperatura e desconforto geral, e, pelo visto, um mês passado no hospital de Birmingham fora suficiente para curá-lo. Agora, seu batalhão queria que voltasse à França Naturalmente ele não queria ir embora. Mas, o que mais podia fazer? Sua saúde deu-lhe a resposta. Perto do final da licença em Great Haywood, ele adoeceu novamente.
Melhorou após algumas semanas, mas, logo após voltar ao serviço, Tolkien mais uma vez ficou doente, e foi internado em um sanatório de Harrogate. Pôde também dar continuidade aos seus escritos Nessa época, Tolkien compôs outra grande narrativa para “O Livro dos Contos Perdidos” a história do infeliz Túrin, que acabou por receber o título de “Os Filhos de Húrin”. Em 16 de novembro de 1917, num hospital de Cheltenham, nasceu o filho de Ronald e Edith. Tolkien, No entanto, apesar de ter recebido alta do hospital, só conseguiu uma licença para viajar para o sul quase uma semana após o nascimento. Decidiram chamar o bebê John Francis Reuel (“Francis” em homenagem ao padre Francis),
Quando conseguiu uma licença do quartel, Tolkien e Edith passearam por um bosque que acharam. Mais tarde, Tolkien relembraria de Edith nessa época: “Seus cabelos eram negros, sua pele clara, seus olhos brilhantes, e sabia cantar – e dançar.” E ela cantou e dançou para ele no bosque, e daí veio a história do mortal Beren, que se apaixona pela elfa Lúthien, quando a ver pela primeira vez em um bosque, dançando e cantando.
Então, de todas as suas lendas, o conto de Beren e Lúthien era o mais amado por Tolkien, porque, ele identificava Lúthien com sua esposa, tanto que após a morte de Edith, ele havia escrito ao filho Christopher, explicando por que queria incluir o nome “Lúthien” na sua lápide: “Ela era (e sabia que era) a minha Lúthien”. Não direi mais agora. Mas gostaria, em breve, de conversar com você longamente”.
Na primavera de 1918, foi transferido para Penkridge, nessa época, os homens de seu batalhão que ainda serviam na França foram todos mortos ou aprisionados. Ao voltar à Guarnição do Humber, Ronald adoeceu outra vez, e foi mandado novamente para o hospital dos oficiais em Hull. Em outubro recebeu alta do hospital, ele foi a Oxford verificar se havia alguma chance de conseguir um emprego acadêmico. As perspectivas não eram promissoras, mas, quando falou com William Craigie, recebeu notícias mais encorajadoras. Craigie fazia parte da equipe do New English Dictionary, cujas partes finais ainda estavam sendo compiladas em Oxford, e disse a Tolkien que poderia arrumar-lhe um emprego de lexicógrafo assistente. quando a guerra terminou, em novembro, Tolkien, Edith, o bebê e Jennie Grove fixaram residência em Oxford.
Durante muito tempo Tolkien sonhara retornar a Oxford. Percebendo que ingressava em uma nova fase de sua vida, Tolkien começou a escrever um diário onde registrava os acontecimentos importantes e seus pensamentos.
Tolkien apreciava trabalhar no Dicionário, e gostava de seus colegas. Não é de surpreender que Tolkien tenha achado essa espécie de trabalho bastante útil para o seu conhecimento. Disse: “Aprendi mais nesses dois anos que em qualquer outro período da minha vida.”
Como outros membros da equipe, começou a dar aulas na universidade. Ele divulgou sua disposição de aceitar alunos e, um a um, os colégios começaram a se manifestar. Edith estava grávida mais uma vez. Na primavera de 1920, Ronald abandonou o trabalho no Dicionário, mas continuava a escrever “O Livro dos Contos Perdidos”. Acabou se candidatando ao posto de docente de Língua Inglesa na Universidade de Leeds. No verão de 1920, pediram-lhe para comparecer a uma entrevista, George Gordon professor de Inglês na universidade, foi encontrá-lo na estação de Leeds. Tolkien lembraria mais tarde: “Antes de deixar Leeds eu já sabia que havia conseguido o emprego.”
Enfumaçada, encardida, envolta por um espesso nevoeiro industrial, atulhada de fábricas, Leeds oferecia poucas perspectivas de boa vida. Ele nutriu sérias dúvidas quanto à sua decisão de aceitar o cargo e mudar-se para o norte da Inglaterra, em outubro de 1920, Edith deu à luz o segundo filho, que foi batizado Michael Hilary Reuel. Alugaram o nº 11 da St. Mark’s Terrace, uma casinha escura numa rua secundária próxima à universidade.
O Departamento de Inglês na Universidade de Leeds era ainda pequeno, mas George Gordon estava promovendo sua ampliação e ele virtualmente entregou a Tolkien a responsabilidade por todo o ensino linguístico do departamento. Durante seu primeiro período naquela cidade, foi convidado a propor seu nome como candidato a duas cátedras de Língua Inglesa: a Cátedra Baines em Liverpool e a nova Cátedra De Beers na Cidade do Cabo. Liverpool rejeitou-o, a Cidade do Cabo ofereceu-lhe o cargo. Mas recusou o emprego. Edith e o bebê não estavam em condições de viajar, e ele não queria separar-se dela.
No início de 1922, um novo docente principiante veio se juntar ao setor linguístico, um jovem chamado E. V. Gordon. Logo após a chegada de Gordon, os dois começaram a colaborar em uma grande obra erudita. Ele e E. V. Gordon decidiram preparar uma nova edição do poema Sir Gawain e o cavaleiro verde. Tolkien seria responsável pelo texto e pelo glossário, enquanto Gordon providenciaria a maior parte das notas. Terminaram o livro a tempo de publicá-lo pela Clarendon Press no começo de 1925.
E. V. Gordon compartilhava o senso de humor de Tolkien. Juntos, os dois ajudaram a formar um Clube Viking entre os estudantes, como seria de esperar, o Clube Viking contribuiu para aumentar a popularidade de Tolkien e Gordon como professores.
Ele vinha compondo bastante nos últimos anos, especialmente poemas relacionados com a sua mitologia. “O Livro dos Contos Perdidos” estava quase completo. O ciclo ainda não tinha um final definido, mas um pouco mais de esforço seria o suficiente para completá-lo. Não obstante, Tolkien começou a reescrever. Era quase como se não quisesse terminá-lo. Assim, não completou o Silmarillion (como veio a chamar o livro), mas voltou atrás, alterando, polindo e revendo.
Em 1922, George Gordon voltara a Oxford como professor de Literatura Inglesa, e Tolkien era candidato à cátedra ocupada por Gordon em Leeds. Não conseguiu, mas Michael Sadler, o vice-reitor, prometeu a Tolkien que a universidade criaria em breve uma nova cadeira de Língua Inglesa especialmente para ele. Sadler cumpriu a palavra, e Tolkien tornou-se catedrático em 1924, aos trinta e dois anos de idade. No mesmo ano, ele e Edith compraram uma casa nos arredores de Leeds.
No começo de 1924, Edith descobriu perturbada que engravidara novamente. em novembro, deu à luz outro menino, que foi batizado Christopher Reuel, em homenagem a Christopher Wiseman.
No início de 1925, chegou a notícia de que a cátedra de Anglo-Saxão em Oxford vagaria Tolkien candidatou-se junto com Kenneth Sisam, seu antigo tutor, na eleição, porém, houve empate, e coube a Joseph Wells, o vice-reitor, dar o voto de Minerva. Ele votou em Tolkien.
PARTE 4: 1925 – 1949 (I) – NUMA TOCA NO CHÃO VIVIA UM HOBBIT
E depois disto nada mais realmente aconteceu, Tolkien voltou a Oxford, foi professor Rawlinson e Bosworth de Anglo-Saxão durante vinte anos, depois eleito professor Merton de Língua e Literatura Inglesa. Voltou a Oxford após a morte da esposa, e faleceu ele mesmo, de uma morte pacífica, com oitenta e um anos. Foi uma vida comum e nada notável de incontáveis outros eruditos, e teria sido só isso, não fosse pelo estranho fato de que, durante esses anos em que “nada aconteceu”, ele escreveu dois livros que se tornaram sucessos mundiais.
É um estranho paradoxo, o fato de que O Hobbit e O Senhor dos Anéis sejam obras de um obscuro professor de Oxford, cuja especialidade era o dialeto medieval e que vivia uma vida comum e suburbana, criando os filhos e cuidando do jardim.
Como podemos compreender isto? na década de 1920, em uma das ruas do norte de Oxford, Tolkien encontrou e comprou uma modesta casa em forma de L. A família deixou Leeds no começo de 1926 e instalou-se na nova casa. Ali permaneceram por vinte e um anos. Mais tarde, em 1929, uma casa vizinha, maior, foi desocupada os Tolkiens decidiram comprá-la, mudando-se no começo do ano seguinte. Pouco tempo antes da mudança nasceu a quarta e a última criança do casal, a filha que Edith tanto esperara, e que foi batizada Priscilla Mary Reuel.
Além do nascimento de Priscilla e a mudança de residência em 1930, não houveram eventos importantes, era uma vida quase rotineira, assim, a melhor forma de descrevê-la talvez seja seguir Tolkien ao longo de um dia típico (apesar de inteiramente imaginário) no início de 1930 Vamos deixá-lo agora. Ele continuará sentado à escrivaninha até uma e meia, duas horas, ou talvez até mais tarde ainda, o silêncio interrompido apenas pelo arranhar da pena sobre o papel, enquanto à sua volta a Northmoor Road dorme.
São estes, portanto, alguns dos aspectos externos de sua vida: a rotina doméstica, as aulas, os preparativos para aulas, a correspondência, uma ou outra noite passada com os amigos as atividades triviais de um homem fechado num modo de vida restrito. Sem nenhum interesse para qualquer pessoa que não esteja inserida nele tudo isto nada diz sobre o homem que escreveu “O Silmarillion”, “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis”, em nada contribui para explicar a natureza de sua mente e a maneira como sua imaginação era influenciada pelo seu ambiente. Uma de suas opiniões mais categóricas era que a investigação da vida de um autor revela muito pouco sobre o mecanismo da sua mente. mas talvez possamos adotar um ponto de vista um pouco mais próximo. Poderíamos talvez começar com fotografias, que existem em abundância, pois os Tolkiens tiravam e guardavam incontáveis instantâneos.
Naturalmente, sua maneira de se vestir era em parte o resultado das circunstâncias, da necessidade de sustentar família numerosa com uma renda relativamente baixa, que não lhe permitia gastos pessoais extravagantes. Mais tarde, quando se tornou um homem rico, ele sem dúvida permitiu-se o luxo de usar coletes coloridos.
Talvez agora valha a pena passarmos á consideração de outra característica, sua voz e sua maneira de falar. Da adolescência até o fim de sua vida, a velocidade e a falta de clareza de sua fala foram notáveis, quase notórias, ele passava depressa de uma ideia para outra e falava com tantas alusões, pressupondo que o ouvinte possuía um conhecimento igual ao seu, que todos, exceto os que tinham uma erudição comparável à sua, acabavam ficando para trás.
Tolkien sempre escutou, sempre teve uma profunda consideração pelas alegrias e tristezas alheias. Assim, embora fosse sob muitos aspectos um homem tímido, fazia amigos com facilidade. ele simplesmente gostava de companhia. O que mais podemos observar?
Bem, qualquer exame cuidadoso da sua vida tem de levar em conta a importância da sua religião, seu compromisso com o cristianismo, em particular com a Igreja Católica, era total que ele experimentava uma profunda alegria espiritual que não podia atingir de outra forma. Sua religião, portanto, era um dos elementos mais profundos e vigorosos da sua personalidade. Em certo nível, sua devoção ao catolicismo estava muito intimamente relacionada com o seu amor pela mãe, que fizera dele um católico.
Seu interesse por tudo era demasiado profundo era incapaz de sustentar uma opinião sem entusiasmo, de ficar indiferente a qualquer tópico que o interessasse, era muito humilde e apesar de saber muito bem do que era capaz, não considerava, que esses talentos fossem particularmente importantes (tanto que mais tarde ficou espantado com a sua fama).
Mas, nas palavras que C. S. Lewis “acontece que acredito que não se pode estudar os homens, pode-se apenas conhece-los, o que é uma coisa bem diferente”.
Não havia dois Tolkiens, um acadêmico e um escritor. Eram o mesmo homem, e seus dois lados sobrepunham-se de tal maneira que é impossível distingui-los ou melhor, nem eram dois lados, mas sim expressões diferentes da mesma mente, da mesma imaginação. Tolkien além de professor era filólogo, escritor e poeta, um homem que não apenas estudava as palavras, mas que as usava para fins poéticos. Conseguia encontrar poesia no som das próprias palavras, diferente de todos os outros filólogos. Ele esteve dentro da língua.” E jamais perdeu sua alma literária.
Tolkien era obcecado pela perfeição, fossem obras narrativas ou trabalhos de filologia. Essa paixão nascia de seu envolvimento emocional com seu trabalho, que lhe permitia tratá-lo apenas com a mais absoluta seriedade. Nada chegava para publicação sem ter sido antes revisto, reconsiderado e polido, e nesse aspecto, ele era o oposto de C. S. Lewis, que enviava manuscritos para serem publicados sem ao menos uma segunda leitura. Bem consciente desta diferença entre ambos, escreveu sobre Tolkien: “Seu padrão de autocrítica era alto, e a simples ideia de publicação geralmente bastava para levá-lo a fazer uma revisão”.
No verão desse ano, Gordon foi hospitalizado para uma operação de cálculos biliares suas condições deterioraram-se subitamente, e ele faleceu de uma doença renal, aos quarenta e dois anos. A morte de Gordon privou Tolkien não apenas de um grande amigo, mas também do colaborador ideal.
Em 11 de maio de 1926, Tolkien participou de uma reunião da Faculdade de Inglês no Merton College. Destacava-se um recém-chegado, um homem de compleição robusta, de vinte e sete anos, que fora recentemente eleito membro e tutor de Língua e Literatura Inglesa. Era Clive Staples Lewis, conhecido entre os amigos como “Jack”.
Lewis, porém, logo veio a sentir uma profunda afeição por aquele homem de rosto comprido e olhos penetrantes, que gostava de boa conversa, risada e cerveja, ao passo que Tolkien tornou-se acessível à mente ágil de Lewis e ao seu espírito generoso enorme. Em maio de 1927, Tolkien havia introduzido Lewis no grupo. Começava uma longa e complexa amizade.
A amizade entre os dois foi tão importante que Lewis escreveu um livro chamado “Os Quatro Amores” em que fala sobre essa amizade. Naquela época a amizade era importante e levado a sério, o sentimento de companheirismo era compartilhado por muitos homens da época, não era homossexual.
Começaram a encontrar-se regularmente nos aposentos de Lewis, Tolkien emprestou a Lewis o texto datilografado de seu longo poema, “A Gesta de Beren e Lúthien”, Ele enviou a Tolkien críticas detalhadas do poema Tolkien divertiu-se, mas não aceitou nenhuma. Contudo, reescreveu quase todos os trechos que Lewis criticara Lewis logo descobriu que isto era característico de seu amigo. “Ele tem apenas duas reações à crítica”, observou. “Ou reescreve toda a obra desde o começo, ou então não dá a mínima importância.”
Lewis era filho de um procurador de Belfast, fora criado como um protestante e na adolescência, professara o agnosticismo. Durante os primeiros anos da amizade, passaram horas juntos, no dia 19 de setembro de 1931, um sábado, encontraram-se no final da tarde. Lewis convidara Tolkien para jantar em Magdalen, e tinha mais outro convidado, Hugo Dyson. Após o jantar, Lewis, Tolkien e Dyson saíram para tomar ar. Lewis, apesar de já ser um crente, ainda não conseguia compreender a função de Cristo no cristianismo, não conseguia perceber o significado da Crucificação e da Ressurreição.
À medida que a noite passava, Tolkien e Dyson mostraram-lhe que estava fazendo uma exigência totalmente desnecessária. Doze dias depois, Lewis escreveu ao amigo Arthur Greeves: “Acabo de converter-me da crença em Deus à crença definitiva em Cristo – no cristianismo. Minha longa conversa noturna com Dyson e Tolkien teve muito a ver com isso.”
Lewis e Tolkien continuaram encontrando-se com frequência. A conversão de Lewis ao cristianismo marcou o início de uma nova etapa na amizade com Tolkien.
No começo da década de 1930 Tolkien, Lewis e outros amigos começavam a se reunir, este grupo ficaram conhecido como os Inklings. “Inklings” originalmente era o nome de uma sociedade literária fundada em 1931 por um estudante chamado Tangye Lean. Entre os que participaram das reuniões antes e durante a guerra estavam o major Warren Lewis (irmão de C. S. Lewis), R. E. Havard, Owen Barfield e Hugo Dyson.
Os Inklings foram uma parte importante da vida de Tolkien em 1939, outro homem foi recrutado para o grupo. Era Charles Williams. Williams tinha cinquenta e tantos anos. Lewis conhecia e admirava Williams havia algum tempo, mas Tolkien só o encontrara uma ou duas vezes, adotou para com ele uma postura complexa, talvez sua reserva em relação a Williams não fosse inteiramente intelectual, obviamente, havia um pouco de ciúme ou ressentimento da parte de Tolkien. Assim, a chegada de Williams marcou o princípio de uma terceira fase na amizade de Tolkien por Lewis, um leve distanciamento da parte de Tolkien que ainda sentia por Lewis um afeto quase ilimitado.
John, o filho mais velho, muitas vezes tinha dificuldades para pegar no sono, quando isso acontecia, seu pai sentava-se na beira da cama e contava-lhe uma história. Desta forma Tolkien descobriu que podia usar a imaginação que estava criando as complexidades do Silmarillion para inventar histórias mais simples.
Ele tinha um senso de humor afável e infantil, quando tirava férias em Filey com a família, no verão de 1925, Tolkien compôs uma longa história para John e Michael. Começou a inventar e a narrar as aventuras de Rover, um cãozinho que aborrece um feiticeiro, e é transformado num brinquedo. Tolkien escreveu esta história com o título de “Roverandom”. O entusiasmo dos filhos incentivou-o a escrever mais histórias para diverti-Los. Entre outras histórias que foram iniciadas, mas logo abandonadas havia o conto de Tom Bombadil. Tom e suas aventuras acabaram se tornando parte de O Senhor dos Anéis.
Em 1932, compra de um carro o levou a escrever outra história infantil, “Mr. Bliss”. Um conto sobre um homem alto e magro que vive numa casa alta e estreita, e que compra um automóvel amarelo-vivo por cinco xelins, e sofre notáveis consequências. A história foi abundantemente ilustrada por Tolkien com tinta e lápis de cor, uma indicação de como Tolkien estava levando a sério o desenho e a pintura. Ele nunca abandonara por completo seu passatempo de infância. Em Oxford, ilustrara vários de seus poemas, usando aquarela, tinta colorida ou lápis.
Em 1925, voltou a desenhar com regularidade uma série de ilustrações para “Roverandom”, desenhou cenas do Silmarillion. Nessa época, já era um artista muito talentoso.
Tolkien escreveu nos anos trinta ou história para agradar a si mesmo. Trata-se de Mestre Gil de Ham. Quando ficou evidente que a continuação de O Hobbit levaria um tempo considerável para ficar pronta, ele ofereceu aos editores “Mestre Gil de Ham” revisto, e este foi aceito com entusiasmo. Mas a insatisfação de Tolkien com a escolha de um ilustrador fez com que o livro fosse publicado apenas em 1949, com desenhos da jovem artista Pauline Diana Baynes. Tolkien gostou muito do estilo “medieval” dos desenhos. O sucesso da Srta. Baynes com “Mestre Gil” fez com que fosse escolhida como ilustradora das histórias de “Nárnia” de C. S. Lewis, e, mais tarde de “Ferreiro de Bosque Grande”.
No entanto, a maior parte de sua atenção estava ainda ocupada pelo Silmarillion. Depois de realizar inúmeras revisões e de reordenar as principais histórias do ciclo, Tolkien também consumia muito tempo na elaboração das línguas e dos alfabetos élficos. Acabava de inventar um novo alfabeto que inicialmente chamou “quenyático” e depois “Fëanoriano”, o mais assíduo ouvinte das histórias era Christopher, o terceiro filho de Tolkien. No início dos anos trinta, Christopher aninhava-se à noite perto da estufa do estúdio para se aquecer e imóvel ficava escutando o pai contar sobre as guerras élficas.
Foi num dia de verão, quando ele estava sentado à janela do estúdio da Northmoor Road, corrigindo provas que anos mais tarde, relembrou: “Um dos candidatos misericordiosamente havia deixado uma página sem nada escrito, e escrevi nela: ‘Numa toca no chão vivia um Hobbit.’ Mas isso é apenas o começo.”